Monstros de Papel

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Chegámos ao labirinto dos possessos: o medo invade-me as palavras que deixei para trás como criaturas de cristal reciclado. O meu instinto é uma faca de passados agonizantes e a minha boca a rosa sem escrúpulos em que cravaste os dentes. O segredo entre nós é uma visão de tamanho complexo, uma algaraviada de crianças enforcadas em sonhos de papel. Tu e eu, sozinhos, somos o disco de um calor central, o recado colorido de azedas e compaixões na noite fria. As curvas e contracurvas moldam-nos as mãos em entes afiados, em sombras do avesso que levamos de encontro ao peito. Mas não adianta descansar porque o presente é um terramoto indispensável de feras a braços com corações. Os olhos que não tenho mostram-me o sonho que não foste. E acomodo as lágrimas algures num cantinho do peito, algures entre a seta desfiada e a colisão. Se ao menos o meu grito destruísse paredes concretas podia morrer de novo no mundo, mas a sensação é apenas grande o suficiente para salvar um de nós. É preciso afogar os gestos antes que tomem forma no real. É preciso cravar as superfícies de rodas dentadas de esquecimento. É preciso ver ossos e deformação, ver o nosso amor de dentro para fora como se dele dependesse o esqueleto harmónico do tempo. É preciso criar uma nova competência, um molde aproximado do cheiro que somos os dois. E ainda assim não basta para nos aquecer…
Tenho medo. Medo como o som da noite escura contra os músculos e a pele. Medo como as raízes se afundam no mar de solidão inquieta. Sento-me no chão e debaixo de mim sinto o mundo respirar – por entre os meus dedos passa o sopro da eternidade e na palma da minha mão crescem rugas de estremecimento. Se ao menos uma vez o amor fosse um monstro mais feliz! Mas a verdade é que na cantilena da manhã de outrora o teu sorriso era uma mágoa aberta para o mundo e o meu desejo apenas uma inspiração. Nesse entretanto nem a brisa morna dos sexos nos trazia a chave de um futuro imaculado em caramelo e margaridas. Porque no fundo nem todos os malmequeres do mundo chegavam para suportar o peso que trazíamos junto aos calcanhares, os grilhões de febre que empunhávamos na cabeça e exibimos como coroas de um milagre mais feliz. Éramos tolos, tolos como as sementes descascadas do sangue que secou, como as promessas tecidas na imensidão de um beijo em segredo. No entanto, ainda acreditávamos no amor…

domingo, 8 de julho de 2007

fruto da imaginação


Queimaste a minha mão com o teu silêncio. Conseguiste conspurcar na tua raiva todas as palavras sóbrias que teci na imensidade de entretantos que então construímos. Como uma esfera de metal começámos por desenhar círculos no escuro do nosso olhar fechado para acabarmos nus na intermitência das pálpebras difusas, na espontaneidade da lágrima ao substituir o lugar de um sorriso. Condensámos no tempo das estrelas tanta coisa que eram os nossos gestos mas nem um reflexo ficou para duvidar. A vida é uma constelação de estilhaços carbonizados ao frio do Inverno, um regaço maternal seco de pobreza e de velhice, gasto como todos os olhares que se colam às coisas que vão. Procuro os contornos da tua bola de cristal e levo aos lábios o paradigma invertido que te recordas de mim. «Sim. Sou eu.» Perdida no desembaraço das cordas fluentes de vento e de chuva, nos raios de certeza transparente que se erguem do teu mar. Um dia gostava que o meu coração se tornasse num lanço de calçada colorida, num cheiro de passos e corridas a passar. Nesse dia seria muitos pés e muitas vidas, teria o consolo de ser um ponto contínuo no universo de ruas e labirintos que te servem de chão. Sentia-te sobre mim e o meu corpo eram fragmentos de pedra numa eternidade de estátua, era a capacidade de me estender sobre o mundo e tu sobre mim. E saber que chegará o dia em que volto a envolver-te nos braços e a acolher-te no meu peito, no centro da imagem da qual nunca deverias ter saído: Porque tu sim, foste um refúgio da imaginação.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

The other side of Crash




A vida é uma antecipação de estilhaços concretos e as nossas lágrimas não chegam para unir a minha mão à tua mão. Guardo no indicador o gesto secreto que te empurra de novo para esse poço aberto de incertezas no olhar, para essa concupiscência que te sinto entre os lábios mas não és capaz de verbalizar. Sorrio porque ao menos assim posso mostrar que num instante tu e eu somos iguais, que num colapso milimétrico de ideias respirei o mesmo entulho que tu. Mas eu, tive a sorte de ficar do lado de cá.








































Cinnamon coffee


The path of light


Anonymous Superhero


"Lisboa menina e moça…"


Yellow bird in the Atmosphere


eternal postcard


electric shocks

(sufficient current flow)

Spring is a New Town


*spiraling*


Daytime Butterfly


pAST and fUTURE


sexta-feira, 22 de junho de 2007

suspiro

Os ventrículos da terra respiram gotas de chuva em manhãs submersas em solidão. Se um dia fosse o suficiente para assegurar a matiz do teu contentamento o ilusionista do relógio perdia de vez a cara por detrás dos gestos de piano. O teu cabelo é uma sombra viva pendente no vento, é um mistério onde se escondem centenas e centenas de bocas e beijos por abrir. Na linha do teu corpo traço memórias, margaridas, canções sossegadas de te ver embalar os olhos ao vento. Às vezes quero mais que as tuas mãos pequenas pousadas no teu rosto, mais do que a certeza de me esconder nos teus olhos quando o frio é noite e as horas são feitiços que não sabemos contar. O labirinto do teu sono é um processo transparente, uma linha traçada no rebordo do teu sorriso. E é tão bom saber que as tuas mãos.
[para I.]

shiuuu!... (o monstro vai voltar)

E se os dias fossem passagens secretas para a dimensão do outro lado das coisas? E se o tempo fosse segredos mal contados, histórias abandonadas em estilhaços de papel? E se as minhas mãos fossem a corrente da eternidade fria, a ilusão comandada por destinos de ângulos articulados e impressões transparentes?
Como eu gostava de prender na língua esse manifesto de trigonometria assassina que me deixa os pensamentos a ferver calados. Se ao menos a solidão batesse em compassos de metrónomo eu saberia identificar o tempo intermédio para respirar. Não consigo conceber as palavras como aranhas de múltiplos tentáculos, como seres desdobráveis em pequenas superfícies que se deslocam no intervalo entre o sonhar e o impresso. Tomara eu saber dos segundos a conta final, tecer nas raízes do corpo os meus músculos de sangue contra o mundo enfermo. Como é bonito o som do alívio a roçar as folhas da paixão, como é sereno o balançar da luz contra as sereias dos meus olhos cansados. Nos dentes trago feridas de outra época, mordidelas fechadas de juízos sem arbítrio. A cera é o meu destino que vagueia entre estados e se consome no calor da queimadura. A noite afunda-se na terra como eu me afundo no mar: a desgraça aparece ao contacto com o vapor. Para onde vão as cores quando o negro aparece? Um destes dias descobri um sinal amarelo na face, uma bolha de alecrim numa prova de contacto – as suas extremidades rompiam o tecido do concreto. Quando descobri o espelho tropecei e viajei para o lado de lá, sorri desesperada num poder ao contrário. Os meus pés cresceram desmesuradamente para o tamanho dos meus passos apertados. Tentei saltar, mas o frontispício da consistência estava no limite quadrado da tela em branco. Como chegar ao ridículo do gelo a crepitar? Ouço campainhas ao fundo e penso que o monstro se apressou a voltar: talvez ainda não seja hoje que me sobra espaço para acreditar.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Mrs Dalloway

«How much she wanted it - that people should look pleased as she came in, Clarissa thought and turned and walked back towards Bond Street, annoyed, because it was silly to have other reasons for doing things. Much rather would she have been one of those people like Richard who did things for themselves, whereas, she thought, waiting to cross, half the time she did things not simply, not for themselves, but to make people think this or that; perfect idiocy she knew (and now the policeman held up his hand) for no one was ever for a second taken in. Oh if she could have had her life over again! She thought, stepping on to the pavement, could have looked even differently!»
Virginia Woolf

terça-feira, 12 de junho de 2007

Vingança Liter(aria/al)?

Penduro aranhas de segredos pelas paredes fechadas na esperança de que um dia tropeces e partas o pescoço das ideias. Como eu gostava de arrebatar dos teus olhos as palavras em fios, como agulhas intermitentes que te tocassem a córnea distendida nos grafemas que são meus. Porque é que insistes em gastar a língua nas palavras? Porque é que te atreves a pensar quando não consegues supor a pontuação do teu corpo baralhado? Não percebo porque consinto as tuas letras no meu beijo, porque não rasgo o papel e recomeço a riscar por cima do teu nome surdo. Devia picotar todas as tuas opiniões antes de as estender em rascunhos na minha cabeça, petrificar a tua voz e fazê-la chocar com os gritos dos aviões. Devias saber que não podes ganhar, eu colo o tempo mais depressa do que tu o consegues chorar e no fim são minhas as frases que contêm o norte do destino. Não consegues encontrar as legendas certas nem que elas te batam na testa! Falas de adjectivos, conjunções, metáforas e figuras de estilo mas não tens a coragem necessária de copiar para o mundo o que escreves no escuro. És cobarde até à última letra antes do ponto final. Desta vez nem os poemas te safam: este livro já é meu!

segunda-feira, 11 de junho de 2007

nel frattempo

sim
estou
quero deixar tudo para trás
tudo
principalmente o coração
a esse arranco-lhe as asas e não lhe dou hipótese de escolher
atiro-o contra os pensamentos concretos da realidade na terra
sem chapéus que o protejam de lágrimas ou tertúlias
pronto a morrer vincado com a força de um papel
sozinho vai medrar e desesperar, vai arrancar gritos às paredes de ferro
vai revoltear compulsivamente no mundo à espera de alguém em quem se consolar
mas vai morrer
triste
feio
único
Se eu pudesse traria um novo dia à raiz do teu contentamento. Pegava nas tuas mãos compridas, de aranha, de artista, e com elas pintava flores e cordeiros de algodão. Porque és pequena e não sabes o que sonhas ou quem te sorri na pele, porque o regaço que conheces é o de quem te embala e te devaneia, quem te vela um amor sossegado de cabeceira. Mas um dia vais ter esperança nas coisas bonitas que crescem da terra, nos olhos profundos que te dizem: filha. Filha. E num momento vais aprender de novo a sorrir e estender a tua vontade como casulos de bolas de sabão no mundo. Vais ser grande e correr os passos, vais ter letras que te vão brilhar. Vais chegar ao silêncio do mundo e ainda acreditar que a chuva toca só para ti.
Um dia, vais fechar os olhos e saber-nos lá.
[para Lara]

domingo, 10 de junho de 2007

Cartas a Sandra:


Obrigada é mais do que tudo o que posso dizer. Se nas minhas palavras se escondiam os segredos das lágrimas desvendaste bem todos os silêncios pousados à beira-mar do incerto. Espero por ti, para ti, em todas as noites que já não me sinto só e almejo pelas minhas mãos vazias enlaçadas no regaço. E com os olhos fechados me despeço em desejos pequeninos, me derramo na loucura que são os meus sentidos e esqueço a vergonha para trás. Sempre. Obrigada.
Digamos que o dia tem muitos significados e a noite mais segundos do que eu posso contar. O orvalho é o trunfo da manhã, a fonte infértil da negação iluminada. Digamos que a minha língua é um casulo de teias afiadas que raspo de encontro à pele. Num mundo de criança eu era um monstro de trapos amarelos, uma ferida aberta com agulhas no sangue e gritos em plenos pulmões. E se o meu sorriso é engolido por esta bola de papel e se perde para sempre no infinito de uma palavra? Digamos que os meus olhos mostram toda a verdade do mundo quando a vida é pouca e cheia de aberração, que o meu lado é sempre o mais negro, um lado de espelhos de facas e medos de encontro ao sexo latente. Digamos que choro pela transparência das minhas mãos quando já não posso mais vê-las inúteis aos pés da cama. O coração ganha entranhas e afunda-se no vagar do sangue morto que me corrobora a acentuação. O meu corpo é uma artéria esquecida, uma colónia apodrecida de ilusões de semântica e textos em cartel? O que existo não chega e todos me pedem de mais. Digamos que o medo é um local sozinho de paredes concretas, um espaço antropófago onde me devoro inteira, onde nada mais me quer a não ser eu. E se um dia o suor me falta nem inclinação tenho para trincar a angústia dos cabelos molhados, a saliva fermentada que me escorre da boca amassada em lágrimas. Quero um paradeiro digno onde possa desaparecer, uma luta onde me enterre na paz da sobriedade e na mudez: na total ausência de linguagem escarlate. No silêncio as frases transformam-se em bestas vorazes e reviram os olhos: um dia vais queimar os meus membros para não te sentir! Digamos que o meu corpo fechado é um disfarce que arranho com força, que os suspiros são vómitos de alma que me encolhem o estômago gasto das desilusões. Digamos que estou demente e o meu entretém são pequenos vagões de onomatopeias do avesso, contágios de grafemas de escrita perturbada pela tensão frágil que te liga o rosto ao sentimento. (Os comprimidos na palma da mão rondam as centenas de vezes que pensei morrer.) A asfixia que sinto entorpece-me as raízes gramaticais e fico privada de uma raiva significativa acumulada em séculos de tinta de carvão. Digamos que os estilhaços do meu corpo são feitos de luz negra impermeável e os meus ossos são restos de nós apertados, concentrados azedos em aglutinação. O teu corpo é um ensaio homogéneo de certezas! E eu sou apenas o espectador presente na alucinação, o ponto infinito em que um hemisfério de sangue é o tempo a andar para trás. Estes cortes são segundos de compasso a contra-regra, a libertação do fogo que me afia as unhas para dentro. O cadáver é um buraco vazio, um aspecto intermitente daquilo que gostava de ser. Digamos que rasgar o chão de encontro às paredes não é suficiente para me fazer louca. Digamos que os meus olhos são cornucópias avariadas, caleidoscópios de ampulhetas em tempestades de deserto. Sou um vaso de nenúfares naufragados, a espinha roída de um desejo fossilizado. Enquanto as sombras possuem buracos inconsistentes de estertor, metástases azuladas coagulam-se com a seiva virulenta que te escorre do ventre injustiçado. Não digas o meu nome que o que sou é a vergonha escondida! Digamos que a fé não me abala o umbigo cego de ambição e não transforma em náusea a ventosa que me agarra à animação. Embalar o choro não é o mesmo que embarcar na anunciação. Digamos que uma crónica é um orgasmo retalhado, um sentimento desfasado de qualquer hipótese. A memória é o desfalque que me acusa o crânio e o contratempo é a minha única razão de ser.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

um segredo de brincar...

Hoje o sol nasceu no teu sorriso salgado e que bom que era esse conforto calmo de um olhar só nosso, a transpiração de um nexo na linguagem fugidia que nos cingia os gestos. Os teus olhos eram poemas circunflexos, juro que eram poemas circunflexos. E que bem que eu me sentia na transparência do mundo de letras e idades entre nós. Foi um fuso quando te estendi a mão e não piquei, quando mudaste os tons da expressão e te acendeste do nada. E ainda recordo num sorriso dentado todas as tolices que assimilei quando então te vi: estavas quieto e parado, segurando na mão todas as ideias de nadas que te passavam à frente. Depois chamei-te e pedi-te que me desses mais, que me estendesses novos poemas com o alcance do horizonte, com os sonhos de ser grande e redonda como um sol de aluguer. Ofereceste-me a mão e um olhar de não sei. Estendi-te um pedaço de papel molhado, pintado de fresco com lágrimas de medo. E o teu olhar de não sei. O teu olhar de talvez assim, devagarinho. Segundos contados voltei e a eternidade era um sopro frágil de coragem recém nascida. Suspirei o mundo e dirigi as minhas palavras para ti. Somente e ainda para ti. Depois? Depois é um segredo só nosso, um murmúrio de quem não tem o que contar.

sábado, 2 de junho de 2007

O meu corpo invisível perdeu-se de um trago. Sou vermelha como o celofane das paredes suicidas, como os buracos de um rosto escancarado na consciência orgânica da eternidade. Se ao menos os meus pés de carne pisassem o estertor do mundo poderia deixar a ponta dos dedos crescer para longe e tocar a natureza irrisória da minha imagem de espelho. Os raios paralíticos do pôr-do-sol encandeiam a minha certeza fluorescente de grafemas agudos e numa palavra resolvo que ninguém.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

X


Enquanto dormias o veneno era muito mais puro. Era sempre muito mais puro. Sempre?!

Incongruências

São mil e uma as correcções da minha memória. São passos em falso, ondas suspensas sob as quais me abrigo de mim. Se trago um sorriso sou alegre; se calco uma lágrima sou de novo feliz.
Esta noite sonhei com o augúrio da vontade – a verdade em sonhos dividida em cem. E tão bonito era Deus nesse meu mundo de sons…
O que penso são impressões transparentes, recortes estagnados de um sinal que já foi. O castigo é o pecado que vem com o vento e condena o orgulho à sombra do esquecimento.
Por cima de mim não há nada a não ser o céu, mas o mundo não basta para semear o horizonte. Acordo com as vozes de que te falei, com as palavras bonitas que disse para mim: o nascimento é uma falha no sistema de luz, é uma espiral doce de algodão trespassada de “porquês”. E o tempo é de novo o suor líquido de um beijo, um passatempo venenoso na ponta do teu dedo do pé. Trago a alma ao peito como quem embala um segredo e digo “porque sim” e juro “nunca mais”.
Sou um suspiro no fundo de um copo e o vapor que se separa de mim. Conto dez dedos a pares e um bilião de soluços sem fim. Garanto o fogo e o Inferno, a poesia indirecta de um espelho de marfim.
Não respires. Podes respirar.
O monstro é um quadrado equilátero sentado à janela.
Estou triste. Como se a tristeza fosse uma prisão, como se fosse uma contusão assentida no meu corpo. Olho para as pegadas em branco e penso onde viemos parar. Continuamente as minhas mãos lançam suspiros independentes, forças de vontade própria que tomam forma em gestos incontinentes de dor. Não acho sentido para as palavras do amor. Não sinto a foz nem a diferença do que dizes. Quanto a mim, apenas me conformo com um desejo rejeitado, com um anúncio decifrado em letras de algodão.
Perdi o sono. Acho que um destes dias perdi também a morte. Começava assim, com um grito do avesso. Depois um revirar de olhos, uma língua escancarada. Um gesto partido no ar dos pulmões. Mas esqueci-me. Ou sonhei. Talvez tenha imaginado que gostava de morrer baixinho. Não sei.

sábado, 26 de maio de 2007

Não consigo dormir na essência de um ponto final. O crepúsculo banha a novidade de um corpo desterrado, o pérfido sentido de uma canção de embalar presa ao verso suspenso da tua boca de mãe. Choras por mim no vazio sepultado dos teus olhos opacos e eu sei que esta noite não vou conseguir dormir, que o embalo de assento celestial do meu sono vai ser um espelho suspenso do tecto da memória apodrecida. Nesse espelho lunar o meu corpo é um osso polido que se escancara na noite de estrelas, é mais uma cicatriz magnética para onde emanas o teu sopro vascular e o teu leite, o teu corpo moribundo e as metáforas amarelentas que me imprimes na pele. Se ao menos o calor transparecesse na ponta dos teus dedos de aranha eu podia dormir sossegada, embalada no silêncio que se cose à duração da língua. Pudesse eu ao menos com os mortos dormir em paz.

Tic-Tac



Acordo quando as coisas se transformam à direita e escolho sempre a esquerda para alucinar. Um dia é um minuto na praia de outrora, o meu desejo sucumbido à inexistência do teu sorriso na pele queimada da minha mão. Com o olhar sigo de perto o veneno do teu corpo ondulado, as serpentes que te viajam nas veias e se esquecem na carne do centro do teu sexo. A alma é um vaivém despedaçado contra o vento das marés, o prelúdio da defesa imaginária no mundo reflexo. Gosto do dedo mindinho da tua mão. Gosto dele porque existe mirrado na comparação, desgasta e desenha o ar quando passa a vertente do meu rosto e a unha se enterra no sangue porque gosto de ti. Ontem a nossa voz junta soava como um lamento de infância, como a gestão dos dias passados, cravados de teias e rendas, de espirais contorcionistas no limiar do céu azul. Algures cai a mágoa, range os dentes ao longe, atira estilhaços de granizo incandescente que me beijam as pálpebras salgadas. Mas a perfuração dos ponteiros remata toda a incerteza de uma fotografia a passar. As palavras são mnemónicas azedas para me lembrar que sou triste, são sintomas de entranhas infectadas por ti e pelas raízes das tuas mãos. Ao abrires a boca crias no espaço um buraco negro que me absorve de dentro para fora, que me revolta o sentido do avesso e se liga aos paradigmas que trago escondidos no medo. Vais voltar, sei que sim. Um dia mais longo vai chegar com a noite da madrugada, vão cair e chover pequenos milagres de papel manchado que se colarão ao meu cabelo cansado. Nesse dia trarei nas faces os mapas da realidade. Nesse dia não serei mais que um cartão de viagens carbonizado do sol. Não, não vou deixar de existir porque um dia é nunca mais. O poder da vida jaz moribundo, encerrado em catedrais e protegido por códigos fulminantes de sonhos travessos. Eu vou trepar aos confins daquela montanha e achar o esqueleto do mundo. Vou decifrar uma a uma as constelações do teu olhar perdido e saber sempre o que sou. Quero pertencer para sempre ao teu corpo molhado e perder num som a noção da intermitência. Debaixo da minha mão a vida é um movimento complexo de ideias ateadas, labaredas contínuas que marcham na solidão de uma nota rendida. Porque é que tens de arrastar contigo um séquito de suspiros de morte? Porque é que me acenas por dentro, estendendo os desejos até ao líquido que me escorre do coração? Porque é que me abraças até o segundo contar e eu cuspir nos teus lábios toda a minha indignação? A minha aptidão para a sentença é um luxo a que não me posso mais renegar.
Todo o tempo do mundo é um exagero.

terça-feira, 8 de maio de 2007

prenúncio

Sempre achei que o horizonte era um ponto ambíguo no caminho da fé das minhas paixões.
Se o mar de tardes paralelas atinge a imensidão do tempo que espelho contigo, o vazio é apenas a beleza convexa reflectida em mil.
Agora a certeza é uma moeda de papel que brilha no escuro, o caminho pegado às pupilas das mãos.
Amanhã o vento vai ser mau outra vez, as preces vão zunir e tilintar contra a tua língua macia e o teu peito de cal.
Contigo consigo ser sempre una nas manhãs.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

respiro/suspiro

A minha maior ambição é escrever como um diafragma exacto no tempo. Abrir as palavras em sulcos de ar e tornar a fechá-las para a vida como válvulas inertes. O suspiro é um compasso de sílabas paradas, de frases revoltas em gemidos complexos. Escrever é respirar: o ventre para cima, a palavra para baixo. Sustenho as letras numa boca fechada como quem lança na água bolhas de papel. Dentro. Fora. Os grafemas são um fluxo incompleto, desejo recalcado da inspiração… E quando chega o ponto final são nós que dão nos brônquios, alvéolos que explodem até dizer nunca mais. Comigo paro. Respiro bem fundo. Escrevo com o ar a roçar o papel. Há sempre uma marca que fica do vapor que sai, gases sujos em forma de letras que tingem o instante da minha sobrevivência. Com as mãos tento arrancar ao vento os meus sons desesperados, mas nunca sei onde começa nem acaba o rebordo das palavras. Respiro. Escrevo. Até ao dia em que morro calada.

sexta-feira, 27 de abril de 2007

quinta-feira, 26 de abril de 2007

sou


Ontem lembrei-me: sou um resquício do rigor da madrugada! Sou um tempo que passa por mim defronte dos espelhos numa casa vazia, o adormecer de trevas lentas no fundo de um poço. Sou aquele cheiro a mar e doce dos cadernos da infância, o rigor das letras tortas e encavalitadas a sorrisos transcendentes numa folha de papel. Sou aquela aflição de querer chegar primeiro sem ninguém atrás de mim, uma metástase parada num soluço de chuva. Sou um poema a que alguém estendeu a mão e se desfez na ponta dos dedos brancos. Sou uma ilusão de martírio colorido, o espaço fremente entre a terra e a solidão. Sou uma carapuça de água limpa, uma dormência segura que te envolve o pé do coração. Sou uma miragem, um reflexo de ausência na areia clara. Sou a ponte, o interstício, a leviandade com as duas mãos no chão. Sou o orgulho de quem chora silêncio, e pede silêncio e trinca o silêncio com as unhas mansas de incerteza. Sou o barulho que fica além do mar, o ponto obtuso por detrás da linha do horizonte. Sou a coreografia amestrada de linhas afiadas, a sensação espartilhada em cubos de algodão. Sou a corrente do poente que corre de pernas no ar, o vento de cerca que pula o incerto e sonha sempre devagar. Sou a respiração de lágrimas que semeiam o chão, a virtude da língua morta em naturezas de papel. Sou o desconsolo, a compreensão, aquela textura de pele nua e molhada, o ritmo azedo da solidão cantada. Sou um correr de saltos e berlindes, de lápis espalhados pelo chão. Sou os desenhos deslocados, a aberração. Sou os passos marcados a lama na janela que dá para o teu quintal…

sábado, 21 de abril de 2007

Eliminar:

A sinistralidade das tuas mãos amordaça-me o orgulho.

Formo pecados de teias, ideias convexas que escrevo quando a escrita não passa de um tempo aos ziguezagues.
Insisto nos gestos até fazer as veias sangrar no ar, até que os pássaros roxos deixem de cantar na lentidão das figuras de fumo.

Suspiro.

Existo no limiar dos aspectos obtusos que ensaias no vento, na cantiga sórdida que encerra consigo as lágrimas daquela infância apodrecida na mata da solidão.
Respiro a superfície líquida das coisas sérias e tento agarrar um mundo pequeno com a minha visão ampliada em cortes de espelho.

Nada.

Nada…

Oiço a minha boca formar palavras azedas que não tenho fé de alcançar, sentimentos mesquinhos de angústias antigas, medos semeados entre ossos e cadáveres, entre os inimigos daquela perfeição ilusória que alucinei.

Se tivesse uma faca cortava todos os acentos do passado.

Queria poder matar as certezas que me sufocam a alma e ser livre de novo para morrer, para distorcer o espectáculo que é sonhar-te em vida uma e outra vez.
A decisão que tomámos é apenas um esboço consciente do destino que se atravessa em nós, uma corda que nos sufoca as vísceras.
O coração e a razão são verdades acabadas, velharias de museus expostas em círculo como espirais que deixam de brilhar.


Todos os desejos que um dia já tive começavam com “Porquê?”

sexta-feira, 20 de abril de 2007

sexta-feira, 13 de abril de 2007

dancemos no mundo...

Isto é como tudo
não há-de ser nada
a minha namorada
é tudo que eu queira
mas vive para lá da fronteira

Separam-nos cordas
separam-nos credos
e creio que medos
e creio que leis
nos colam à pele papéis

Tratados, acordos
são pântanos, lodos

Pisemos a pista
é bom que se insista
dancemos no mundo

Eu só queria dançar contigo
sem corpo visível
dançar como amigo
se fosse possível
dois pares de sapatos
levantando o pó
dançar como amigo só

Por ódio passado
que seja maldito
amor favorito
não tem importância
se for é de circunstância

Separam-nos crimes
separam-nos cores
a noite é de horrores
quem disse que é lindo
o sol-posto de um dia findo

Sozinho adormeço
E em teu corpo apareço

Pisemos a pista
é bom que se insista
dancemos no mundo

Eu só queria dançar contigo
sem corpo visível
dançar como amigo
se fosse possível
dois pares de sapatos
levantando o pó
dançar como amigo só

Em passos tão simples
trocar endereços
num mundo de acessos
ar onde sufocas
lugar de supostas trocas

Separam-nos facas
separam-nos fatwas
pai-nossos e datas
e excomunhões
acondicionando paixões

Acenda-se a tua
luz na minha rua

Pisemos a pista
é bom que se insista
dancemos no mundo

Eu só queria dançar contigo
sem corpo visível
dançar como amigo
se fosse possível
dois pares de sapatos
levantando o pó
dançar como amigo só

Sérgio Godinho

sábado, 7 de abril de 2007

Enforco-me na escuridão dos pecados que por ti cometi. A dor é como um analgésico de silício, como uma porta de metal que se escancara em mim. No fundo do meu ser inconsistente está a certeza de te ter em mim, de ser tu completamente, de seres uma presa inocente nesse espectáculo que são os meus gestos informais. Agora mais que nunca és meu. És meu porque te prendo nesse olhar vazio, porque me entrego e te domino de dentro para fora ao sabor do incerto. As tuas verdades ressoam como terramotos de incesto nos braços da terra mãe. Corre! Põe a salvo esse sabor que me agarra a voz com braços quentes de ardor. Corre! Desafia a ingratidão dos sentidos que te esculpem as emoções com moldes serviçais. Corre! Torna os instantes em carne viva, trinca essa sede imortal que é despertares para mim.

Só existes enquanto eu quiser.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Os meus olhos são verdades cintilantes que aspiram do mundo uma fé cega de entretantos. São relíquias guardadas em caixotes de cetim transparente que reluzem no ar da noite por entre os gritos dos enforcados. São a matéria líquida que deixas escorregar entre os dedos e os anéis, entre os caminhos tortuosos das rugas na palma da tua mão. Se não fossem os meus olhos tu não existias: eras apenas mais um lugar vazio num baralho de facas afiadas, uma serpente na torrente de segundos que nos separam a vida. Os meus olhos são o ponto de passagem das pérolas que escorrem das paredes brancas em noites de solidão, são cearas incandescentes de loucura quando os sonhos se viram do avesso. Nos meus olhos guardo a gratidão da mortalidade infinita de todas as coisas, o terno instante em que primeiro te vi. Correm memórias pela minha face seca, deslizam devagar escavando caminhos e sinais de línguas sem gestos, pedaços de gesso fragmentados ao milímetro pela escuridão. Os meus olhos são palavras decompostas em vento, criaturas de marfim que te cavalgam a alma quando o frio é intenso e és apenas vapor. Os meus olhos não são risos nem cor, são drogas escarlates de sangue e aventuras por viver. São conspirações, transições incessantes de cadáveres revoltos em nada, desilusões, eliminações. Os meus olhos são emoções simples de teclas clandestinas. São hipóteses traçadas em redor das aparências, são festas impermeáveis ao gosto da tua saliva. Os meus olhos são carinhos que abandonei nos dias de criança feliz, são lendas transformadas no contacto com a tua mão. São histórias, compulsões de uma eternidade paralela que se enrola na teia que te prende os pés do destino. Os meus olhos são cegos, cegos como os pontos que deste na calma deste amor sem nós, cegos como um mundo de bolas de sabão e corações a pontapé. Nos meus olhos guardo os picos do abismo em que mergulhas quando julgas chegar até mim, guardo o silêncio que é dizer nunca mais. Os meus olhos são pequenos para abarcar toda esta desilusão murcha das trevas de papel.